Uso off-label em bebês: por que e como os estudos clínicos acontecem na população pediátrica?
No dia a dia da farmácia, é comum nos depararmos com prescrições para crianças com menos de 2 anos que se enquadram como “uso off-label“. Essa prática, embora rotineira, gera uma dúvida persistente entre muitos profissionais: a ausência de indicação em bula significa que não são realizados estudos clínicos nesta faixa etária tão vulnerável?
A resposta é mais complexa do que um simples “sim” ou “não”. Este artigo foi elaborado para desmistificar o tema, esclarecendo por que a cautela é a norma e como a ciência avança para garantir a segurança e eficácia de tratamentos para os nossos pacientes mais jovens.
Primeiro, uma confusão comum: o que realmente são estudos clínicos?
Antes de tudo, é importante alinhar conceitos. Muitos associam o termo “estudo clínico” exclusivamente aos ensaios clínicos intervencionistas. No entanto, a definição é mais ampla.
- Estudos clínicos é o termo para toda pesquisa realizada em seres humanos. Eles se dividem em duas grandes categorias:
- Ensaios clínicos: são estudos de intervenção, em que os pesquisadores testam ativamente o efeito de algo, como um novo medicamento. São estruturados em fases (I, II, III e IV – pós-comercialização) para avaliar segurança e eficácia.
- Estudos observacionais: nestes, a equipe de pesquisa não interfere. O papel do cientista é observar, coletar dados e analisar desfechos em um ambiente real. Exemplos incluem estudos de coorte, caso-controle e relatos de caso.
Portanto, quando falamos da ausência de estudos, geralmente nos referimos à escassez de ensaios clínicos de fase III antes da comercialização do medicamento, e não à inexistência de toda e qualquer pesquisa clínica.
Por que a maioria dos medicamentos é aprovada inicialmente para maiores de 2 anos?
A decisão de, a princípio, não incluir crianças com menos de 2 anos nos ensaios clínicos para registro de um medicamento não é arbitrária. Ela se baseia em diferenças fisiológicas que tornam esta faixa etária única e imprevisível. O período do nascimento aos 24 meses é uma janela de desenvolvimento dinâmico e acelerado.
1. Metabolismo hepático imaturo: o sistema de enzimas hepáticas, como o citocromo P450, ainda está em desenvolvimento. Isso significa que a capacidade do bebê de metabolizar um fármaco é drasticamente diferente e menos previsível. Uma dose segura para uma criança de 3 anos pode ser tóxica para um bebê de 10 meses, por exemplo.
2. Função renal em maturação: os rins de um recém-nascido e de um lactente também são imaturos. A taxa de filtração glomerular é significativamente menor, o que prolonga a permanência do medicamento no organismo e eleva o risco de acúmulo e efeitos adversos.
3. Diferenças na distribuição corporal:
- Composição corporal: bebês possuem uma maior porcentagem de água corporal, o que altera a distribuição de fármacos hidrossolúveis.
- Ligação a proteínas: a menor concentração de proteínas plasmáticas, como a albumina, resulta em uma maior fração de fármaco “livre” e ativo no sangue, aumentando o potencial de toxicidade.
- Barreira hematoencefálica: esta barreira, que protege o cérebro, ainda é permeável em bebês. Fármacos que não atravessariam em crianças mais velhas podem alcançar o sistema nervoso central e causar efeitos neurológicos graves.
Essa imprevisibilidade da farmacocinética (o que o corpo faz com o fármaco) e da farmacodinâmica (o que o fármaco faz no corpo) torna os ensaios clínicos iniciais mais arriscados e complexos. A partir dos 2 anos, a fisiologia da criança começa a se estabilizar, tornando os resultados mais previsíveis e seguros.
O ponto de virada: a realidade do off-label e a realização de estudos direcionados
Apesar dos desafios, é um mito que não existem medicamentos e estudos para essa faixa etária. A prática clínica demanda soluções, e a ciência responde a essa demanda.
Quando um médico prescreve um medicamento sem aprovação em bula para menores de 2 anos, ele está fazendo um uso off-label. Essa decisão é amparada por uma série de responsabilidades:
- Análise de risco-benefício: o benefício esperado deve superar os riscos conhecidos.
- Base em evidências: a decisão não é aleatória. Ela se baseia na melhor literatura científica disponível, como estudos observacionais, relatos de caso ou diretrizes de sociedades de especialistas.
- Ajuste de dose e formulação: a dose é cuidadosamente calculada com base no peso e idade, e a forma farmacêutica é adaptada para a administração segura.
É importante ressaltar que muitos medicamentos que usamos hoje foram estudados e aprovados para bebês, como paracetamol, ibuprofeno, diversos antibióticos (amoxicilina, cefalexina) e, o exemplo mais robusto: as vacinas. A grande maioria das vacinas do calendário infantil é rigorosamente testada e aprovada para menores de 2 anos.
Sim, ensaios clínicos acontecem em menores de 2 anos.
A realização de estudos em lactentes ocorre principalmente em dois cenários:
- Necessidade pós-comercialização: quando um medicamento se mostra imprescindível na prática pediátrica, a indústria farmacêutica pode ser incentivada (ou requerida por agências regulatórias) a conduzir ensaios para obter a indicação formal em bula. Um exemplo é o estudo de fase III com paracetamol e ibuprofeno em crianças de 12 a 59 meses com asma (NCT01606319), buscando dados de segurança em uma população específica.
- Indicação primordial: para doenças que afetam primariamente esta faixa etária, os estudos clínicos são conduzidos desde o início com esses pacientes. O caso do onasemnogeno abeparvoveque (Zolgensma®), para Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo I, é emblemático. Como a doença se manifesta de forma grave logo após o nascimento, os ensaios clínicos foram desenhados especificamente para incluir e avaliar a segurança e eficácia em bebês.

Zolgensma: medicamento inicialmente estudado em crianças menores de 2 anos de idade.
Conclusão
A relação entre o uso off-label e a pesquisa clínica em crianças menores de 2 anos é complexa. A hesitação em incluir essa população em estudos iniciais é uma medida de proteção baseada em sólidas razões fisiológicas.
No entanto, isso não significa uma proibição. Pelo contrário, estudos clínicos (tanto ensaios quanto observacionais) são sim realizados, seja para atender a uma necessidade terapêutica que surge após a comercialização, seja para desenvolver tratamentos para doenças que afetam primordialmente os bebês.
Para o farmacêutico, compreender essa dinâmica é importante para orientar pacientes e dialogar com a equipe de saúde, reforçando que, mesmo no cenário off-label, a busca por uma prática baseada em evidências é o que guia as decisões terapêuticas para os mais vulneráveis.
