ELEVIDYS: crônica de um Desastre Anunciado de R$ 1 Bilhão para o SUS
Em fevereiro de 2024, minha mesa no Departamento de Gestão das Demandas em Judicialização na Saúde (DJUD) do Ministério da Saúde recebeu os primeiros processos para o fornecimento de um medicamento chamado ELEVIDYS (delandistrogeno moxeparvoveque). Iniciava-se ali um dos capítulos mais emblemáticos e custosos da judicialização da saúde no Brasil, uma história que eu, como parte da equipe técnica, acompanhei com crescente preocupação.
O medicamento sequer possuía registro no Brasil. Sua aprovação nos Estados Unidos pela FDA (Food and Drug Administration), em junho de 2023, já havia sido cercada de polêmicas. Numa decisão incomum, o diretor da divisão de biológicos, Peter Marks, aprovou o ELEVIDYS contrariando a avaliação de sua própria equipe técnica, que não encontrou sustentação robusta de eficácia e segurança para o produto.
A doença e a falsa promessa
A propaganda da indústria farmacêutica não demorou a cruzar fronteiras e chegar aos consultórios de neurologistas brasileiros, que tratam da Distrofia Muscular de Duchenne (DMD).
A Distrofia Muscular de Duchenne é uma doença genética rara, degenerativa e fatal, que afeta principalmente meninos. Causada por uma falha no gene que produz a proteína distrofina, essencial para a integridade dos músculos, ela leva a uma fraqueza muscular progressiva e generalizada. Com incidência de aproximadamente 1 a cada 3.500 nascidos do sexo masculino, a doença avança rapidamente, levando à perda da capacidade de andar na adolescência e, posteriormente, a complicações cardíacas e respiratórias graves que limitam drasticamente a expectativa de vida.
Diante de um prognóstico tão severo, a promessa de uma terapia gênica inovadora soou como um milagre. O ELEVIDYS propõe inserir no corpo, através de um adenovírus modificado, um transgene capaz de induzir as células musculares a produzir uma versão encurtada da distrofina, a microdistrofina. O problema, que os dados já indicavam, é que essa “solução” parecia não funcionar. O estudo clínico de fase III (EMBARK), por exemplo, teve um resultado desolador: a melhora dos pacientes que usaram o medicamento foi estatisticamente insignificante quando comparada àqueles que receberam placebo. Em outras palavras, ele não se mostrou mais eficaz que uma substância inerte.
A engrenagem da judicialização
Mesmo sendo um tratamento experimental no país e com evidências tão frágeis, os médicos começaram a prescrevê-lo. A partir daí, a engrenagem da judicialização, que se tornou um verdadeiro mercado com escritórios de advocacia especializados, entrou em ação. O mecanismo é conhecido:
- O paciente recebe a prescrição de um medicamento de altíssimo custo, não disponível no SUS.
- A família, sem condições de arcar com os valores, entra na justiça contra a União.
- O Judiciário, muitas vezes alheio às complexidades científicas e sanitárias, concede liminares determinando o fornecimento.
- O Ministério da Saúde é obrigado a alocar recursos, retirando verbas de outras áreas essenciais, para comprar e fornecer o medicamento a um único paciente.
Parece que muitos juízes vivem em um “mundo de Nárnia”, onde a ciência não tem vez. Nas notas técnicas que eu redigia para subsidiar a Advocacia-Geral da União (AGU), eu já apontava a ausência de provas de eficácia e segurança do ELEVIDYS. Mas era como gritar no vácuo. As decisões favoráveis continuaram, incluindo uma que obrigou o Ministério a depositar R$ 19 milhões para um único autor em 2024.
A pressão foi imensa. Em dezembro de 2024, a ANVISA cedeu e concedeu um registro condicional ao ELEVIDYS. No mesmo mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) homologou um acordo para o cumprimento das decisões judiciais. O resultado foi imediato: em janeiro de 2025, o DJUD já acumulava mais de 60 processos para cumprimento. O custo para o governo, negociado pela Roche com isenção de ICMS, era de R$ 11 milhões por paciente — um valor que, para o cidadão comum, ultrapassaria os R$ 17 milhões. A projeção de gastos para o SUS superava os R$ 660 milhões. É fundamental notar que este número de processos deferidos só não foi maior porque os estudos se limitaram a crianças de 4 a 7 anos. Se a indicação fosse ampliada para todos os pacientes com Duchenne, a demanda seria exponencialmente maior, e o rombo nos cofres públicos, incalculável.
Para agravar o contrassenso, em abril de 2025, a própria instância técnica de avaliação do governo emitiu seu parecer. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), órgão cuja finalidade é assessorar o Ministério da Saúde sobre a inclusão de novas tecnologias, analisando criteriosamente a eficácia, a segurança e o custo-benefício, recomendou a não incorporação do ELEVIDYS. A decisão dos especialistas foi clara: não havia justificativa clínica nem econômica para oferecer o tratamento no sistema público. Mesmo assim, as ordens judiciais continuaram a ignorar a ciência.

O fim da linha: suspensão por risco de morte
A realidade, enfim, se impôs. Em 24 de julho de 2025, a ANVISA publicou a Resolução RE Nº 2.813, suspendendo a comercialização, importação, uso e propaganda do ELEVIDYS. A decisão foi uma resposta direta a um alerta gravíssimo vindo dos EUA. Acontece que em junho de 2024, a FDA não só converteu a aprovação inicial em uma aprovação definitiva, como também expandiu perigosamente a indicação para perfis de pacientes que não haviam sido incluídos nos estudos originais. Foi justamente nesse grupo, para o qual a segurança era uma incógnita, que ocorreram os três óbitos associados à terapia.

Os estudos e os relatos de vida real confirmaram o que temíamos: além de ineficaz, o ELEVIDYS não é seguro. Seus riscos incluem:
- Durante a infusão: reações agudas graves, lesão hepática e miocardite (inflamação do músculo cardíaco).
- Riscos posteriores: ativação descontrolada do sistema imune e outros eventos adversos graves ligados ao vetor viral, que culminaram nas mortes relatadas.
Reflexão: o preço da irresponsabilidade coletiva
O caso ELEVIDYS é um retrato doloroso de um sistema falho. O SUS já gastou quase R$ 1 bilhão em um medicamento que se provou ineficaz e perigoso. Esse dinheiro foi desviado da compra de tratamentos de eficácia comprovada para inúmeras outras doenças.
É compreensível e legítimo o desespero de famílias que enfrentam uma doença tão cruel como a Duchenne. Elas são as maiores vítimas, iludidas pela propaganda agressiva de uma indústria que, como foi dito, faz do Brasil seu “parque de diversões”. O problema se agrava quando médicos, seja por desinformação ou por conflitos de interesse, prescrevem terapias experimentais e caríssimas, e quando escritórios de advocacia lucram com essa fragilidade.
Contudo, a responsabilidade central recai sobre um Judiciário que insiste em ignorar a ciência e sobre a fragilidade de nossas agências reguladoras diante da pressão econômica. Temas do STF, como o 1234 e o 6, foram criados para racionalizar a judicialização, mas na prática pouco mudaram. Continuamos a fornecer, via decisões judiciais, outros medicamentos comprovadamente ineficazes para a mesma doença, como atalureno, eteplirsen e casimersen, gastando milhões sem qualquer acompanhamento de resultados ou prestação de contas.
Até quando permitiremos que a esperança seja sequestrada pelo marketing e que o orçamento da saúde pública seja sangrado para financiar experimentos fracassados? O caso ELEVIDYS não pode ser apenas uma estatística de prejuízo. Deve servir como um alerta máximo de que a judicialização da saúde, quando desprovida de evidência científica, não promove justiça. Pelo contrário, ela gera um custo bilionário em vidas, em recursos e na própria credibilidade do nosso sistema de saúde. A mudança é urgente e precisa envolver todos os atores: governo, juízes, médicos e a própria sociedade, em defesa de um SUS baseado em ciência, e não em falsas promessas.
Autora: Larissa Alana Palma é farmacêutica, mestre e professora. No Ministério da Saúde, atuou como farmacêutica analista no DJUD, onde foi responsável por elaborar notas técnicas para subsidiar a defesa da União em casos como o do ELEVIDYS e outros medicamentos de alto custo.
