Blog Inspifar

O sonho roubado: a realidade crua do desvio de função na farmácia

O sonho roubado: a realidade crua do desvio de função na farmácia

“Eu tinha o sonho de ser farmacêutica.” É assim, com um misto de nostalgia e frustração, que eu, Larissa Alana, começo a minha história. Uma história que, infelizmente, espelha a dura realidade que muitos dos meus colegas de profissão enfrentam no Brasil: o crônico e humilhante desvio de função.

Recém-formada em 2020, com o diploma em mãos, mas sem a tão exigida “experiência”, encontrei as portas fechadas em Brasília. As propostas? Trabalhar como caixa ou atendente, um prenúncio do que estava por vir. A esperança ressurgiu com uma oportunidade no Sul do país, em uma grande rede com mais de mil lojas. Acreditava que ali, finalmente, seria a farmacêutica que sempre sonhei ser: uma autoridade em medicamentos, respeitada e reconhecida. A realidade, no entanto, foi um balde de água fria.

“Farmacêutico está aqui apenas para cumprir a burocracia.”

Esta frase, dita por uma gerente não-farmacêutica, resume a cultura organizacional que encontrei. A minha presença era meramente para cumprir uma exigência legal. Em vez de prestar cuidado farmacêutico, orientar pacientes e fazer anamneses, as minhas tarefas diárias incluíam limpar prateleiras, operar o caixa e fazer inventário de estoque. “Eu fazia tudo, menos ser farmacêutica“, desabafo. A atenção à saúde dos clientes, a minha principal função, era impossível. Notificar uma reação adversa a um medicamento? Sem chance, estava ocupada a passar compras.

De volta a Brasília, a situação piorou. Em outra rede, minhas obrigações incluíam lavar a loja e os banheiros, e até mesmo recolher o lixo. A humilhação atingiu o auge quando uma gerente me repreendeu de forma arrogante por sentar por alguns segundos durante o horário de almoço, com a loja vazia. Em outra grande rede, a maior do Brasil, a história se repetiu. O desvio de função era a norma a tal ponto que, mesmo sendo farmacêutica, fui obrigada a participar da montagem de uma nova loja, desde o início.

Esta minha jornada não expõe apenas a falha de gestores individuais, mas sim um modelo de negócio adoecido. Um modelo que enxerga a farmácia comunitária como um supermercado de medicamentos e o farmacêutico como um custo a ser minimizado, e não como o pilar da saúde que deveria ser. A meta de vendas sobrepõe-se à meta de vidas cuidadas, e o balcão transforma-se numa linha de produção, onde a velocidade da transação financeira importa mais do que a qualidade da orientação.

O que diz a lei e o que a realidade grita?

A legislação é clara. A Lei 13.021 de 2014 define as farmácias como estabelecimentos de saúde, e não como meros comércios. Esta lei determina a presença obrigatória de um farmacêutico durante todo o horário de funcionamento, não apenas como uma figura decorativa, mas como o responsável técnico pela assistência farmacêutica. A Resolução 585 de 2013 do Conselho Federal de Farmácia (CFF) vai mais além, estabelecendo 46 atribuições clínicas para o farmacêutico.

Quando esta legislação é ignorada, as consequências são graves e silenciosas. Interações medicamentosas perigosas passam despercebidas, o uso irracional de antibióticos é fomentado por leigos e o paciente perde a oportunidade de receber um cuidado que poderia prevenir complicações sérias. Cada farmacêutico relegado ao caixa é um risco potencial para a saúde da comunidade que ele jurou proteger.

Afinal, qual é o verdadeiro papel do farmacêutico na drogaria?

Longe de ser um mero “cumpridor de burocracia” ou um operador de caixa, o farmacêutico é um agente de saúde. Quando nos permitem atuar, transformamos a drogaria num verdadeiro ponto de cuidado. Nossas reais funções incluem:

  • Cuidado farmacêutico e dispensação orientada: não é apenas entregar uma caixa. É analisar a prescrição, explicar ao paciente como o medicamento funciona, qual a forma correta de usar, os horários, os possíveis efeitos adversos e como manejá-los. É garantir que o paciente saia da farmácia sem nenhuma dúvida sobre seu tratamento.
  • Acompanhamento farmacoterapêutico: para pacientes com doenças crônicas como diabetes, hipertensão ou asma, podemos oferecer um acompanhamento contínuo, monitorando a eficácia e a segurança dos medicamentos, ajudando a melhorar a adesão ao tratamento e a qualidade de vida.
  • Farmacovigilância ativa: somos a linha de frente para identificar e notificar reações adversas a medicamentos. Quando um paciente relata um problema, é nossa função analisar o caso e reportá-lo aos órgãos de vigilância sanitária, como o VIGIMED da Anvisa, contribuindo para a segurança de todos.
  • Educação em saúde: promover campanhas de saúde, orientar sobre prevenção de doenças, incentivar a vacinação e o uso racional de medicamentos. Somos o profissional de saúde mais acessível à população e uma fonte confiável de informação.
  • Serviços de saúde básicos: realizar aferição de pressão arterial, medição de glicemia capilar, aplicação de medicamentos injetáveis e outros serviços farmacêuticos previstos em lei, oferecendo suporte e encaminhando ao médico quando necessário.

Quando esta legislação e estas funções são ignoradas, as consequências são graves e silenciosas. Interações medicamentosas perigosas passam despercebidas, o uso irracional de medicamentos é fomentado por leigos e o paciente perde a oportunidade de receber um cuidado que poderia prevenir complicações sérias. Cada farmacêutico relegado a limpar o chão é um risco para a saúde da comunidade que ele jurou proteger.

Um problema generalizado e um silêncio cúmplice

A minha história não é um caso isolado. Uma rápida pesquisa na internet revela uma avalanche de comentários e desabafos de outros profissionais que vivem a mesma realidade. Falam da pressão para “empurrar” produtos, da obrigação de realizar tarefas administrativas e da completa ausência de estrutura para o atendimento clínico. Muitos relatam o medo de denunciar o desvio de função e sofrer retaliações, como a demissão e a inclusão em “listas sujas”, o que perpetua um ciclo de silêncio e exploração.

Como mudar essa realidade? Um caminho de ação e união

A indignação é o primeiro passo, mas ela, por si só, não muda estruturas. A transformação exige estratégia, coragem e, acima de tudo, união. Aqui está um caminho fundamentado para que possamos, juntos, resgatar a dignidade da nossa profissão:

1. Conhecimento e documentação: a base da defesa individual

O primeiro a acreditar no seu valor deve ser você.

  • Conheça seus direitos: estude a fundo a Lei 13.021/14, a Resolução 585/13 do CFF e o Código de Ética Farmacêutica. Conheça também as convenções coletivas do seu estado. O conhecimento é a sua primeira armadura.
  • Documente TUDO: o ônus da prova é um desafio. Mantenha um diário detalhado, com datas, horários e descrições de todas as ordens e tarefas que configuram desvio de função. Se possível e seguro, salve e-mails, mensagens de WhatsApp e tire fotos de escalas de limpeza ou outras evidências. Essa documentação servirá para qualquer denúncia formal ou ação legal.

2. A força do coletivo: sindicatos e conselhos fortes

Sozinhos, somos vulneráveis. Juntos, somos uma força.

  • Fortaleça seu sindicato: filie-se e participe ativamente do Sindicato dos Farmacêuticos do seu estado. Sindicatos fortes negociam acordos coletivos melhores, podem oferecer suporte jurídico e têm mais poder para enfrentar as grandes redes.
  • Pressione o Conselho Regional de Farmácia (CRF): ele não é um inimigo, mas o órgão fiscalizador da profissão. Use as provas que você documentou para fazer denúncias formais e bem fundamentadas, e encoraje seus colegas a fazerem o mesmo. Um grande volume de queixas sobre a mesma empresa pressiona o CRF a agir. Embora o Conselho não tenha a atribuição de multar empresas por desvio de função, ele pode reunir essas denúncias para subsidiar e fortalecer uma representação junto ao Ministério Público.
  • Denuncie ao Ministério do Trabalho: o desvio de função é uma prática trabalhista ilegal. Você pode fazer uma denúncia anônima nos canais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Além disso, casos graves e coletivos podem ser levados ao Ministério Público do Trabalho (MPT), que pode investigar a empresa e propor Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com multas pesadas em caso de descumprimento.

3. Valorização externa: a percepção do paciente

A mudança também acontece quando o paciente entende e exige o nosso valor.

  • Ocupe seu espaço clínico: em cada pequena oportunidade, exerça sua função. Ao entregar um medicamento, ofereça orientação. Se um paciente comprar um aparelho de pressão, ofereça-se para aferir e explicar o resultado. Pequenos atos de cuidado, repetidos diariamente, mudam a percepção do público sobre quem somos.
  • Eduque a sociedade: use as redes sociais e conversas no balcão para explicar o que é o cuidado farmacêutico. Quando o paciente entender que tem direito a um serviço de saúde qualificado dentro da farmácia comunitária, ele se tornará um aliado e passará a exigir a sua presença e seu conhecimento.

A valorização do farmacêutico não é apenas uma questão de respeito profissional; é um pilar para a saúde pública. Somos a linha de frente, a barreira contra o uso indevido de medicamentos e a fonte de informação mais acessível. A mudança começa com a nossa voz, com a coragem de dizer “não” ao desvio de função e de exigir o nosso lugar de direito. É hora de nos unirmos para resgatar a dignidade, o propósito e o futuro da nossa profissão. A farmácia é lugar de saúde, e na saúde, o protagonista deve ser o cuidado.

Autora: Larissa Alana Palma é farmacêutica, professora universitária e Mestre em Gerontologia. Sua robusta formação inclui especializações em Farmácia Clínica e Hospitalar, Oncologia, Análises Clínicas, Docência para o Ensino Superior e Lean Six Sigma na área da saúde. A sua autoridade para debater o desvio de função é fundamentada na prática: atuou em cinco redes de drogarias, entre elas as duas maiores do país, o que lhe confere um olhar único e interno sobre os desafios da profissão no varejo farmacêutico.

Respostas de 2

  1. Farmacêutico está aqui apenas para cumprir a burocracia.

    Essa frase revela o retrato lamentável de muitas realidades. Reduzir um profissional altamente capacitado a uma mera formalidade legal não é apenas um desrespeito à classe, mas também à saúde da população.

    É frustrante ser impedida de exercer a profissão para a qual foi formada. Não se trata apenas de dignidade profissional, mas de segurança para quem depende de orientação adequada sobre medicamentos. Enquanto a visão gerencial enxergar o farmacêutico como um custo e não como um investimento em saúde, quem perde é o paciente.

  2. Desvio de função como abrir e fechar caixa; responsabilizar por quebra de caixa de drogarias; limpar loja desde o banheiro até a calçada lavada, faixa de loja lavar tbm; plantões de dobras finais de semana sem receber hora extra ou direito a uma folga.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Procurar

Postagens mais comentadas

O Autor

A Inspifar é uma instituição de ensino especializada em cursos de pós-graduação na área da Farmácia. Com foco em capacitação técnica e científica, oferecemos formações atualizadas e voltadas para o mercado, preparando farmacêuticos para se destacarem em um setor em constante evolução. Nosso compromisso é impulsionar carreiras por meio de conhecimento de qualidade e práticas alinhadas às exigências da profissão.

CONTATO

Alguma dúvida? Entre em contato conosco!

Ligue para nós

(61) 8147-9189

E-mail

atendimento@inspifar.com.br