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O “jeitinho” que ameaça a profissão: reflexões sobre a Operação “Tarja Preta” e o futuro da farmácia

O “jeitinho” que ameaça a profissão: reflexões sobre a Operação “Tarja Preta” e o futuro da farmácia

Uma notícia recente serve como um duro, porém necessário, alerta para a nossa classe profissional. No dia 08 de agosto de 2025, a 20ª Delegacia de Polícia do Distrito Federal deflagrou a “Operação Tarja Preta”, culminando em mandados de busca e apreensão em uma drogaria na DF-001 e na residência de sua proprietária. A investigação, apoiada pela Vigilância Sanitária (VISA/DF), apura o armazenamento e a comercialização de substâncias psicotrópicas em flagrante desconformidade com a legislação vigente, um ato tipificado como tráfico de entorpecentes.

Embora a responsável técnica não tenha sido localizada no momento da operação, o caso expõe uma ferida aberta na farmácia comunitária: a normalização de práticas ilegais, muitas vezes toleradas ou até incentivadas pela comunidade local sob o pretexto do “jeitinho”.

Esse evento não é um caso isolado, mas sim o sintoma de um problema crônico que precisa ser debatido com a seriedade que merece. Cada vez que um medicamento controlado é dispensado sem a devida receita e escrituração de controle sanitário, estamos diante de uma falha grave que transcende o balcão da farmácia.

Medicamentos apreendidos pela Polícia Civil durante a “Operação Tarja Preta” em drogaria no DF.

O risco para a saúde pública

Quando a regulamentação é burlada, abrimos a porta para consequências devastadoras em saúde pública. A venda irregular de medicamentos controlados não é uma mera infração administrativa; é um atentado direto à segurança da população. Vamos analisar os riscos específicos:

  • Antimicrobianos: a venda sem prescrição é o principal combustível para a Resistência Antimicrobiana (RAM), uma das maiores ameaças à saúde global segundo a OMS. O uso indiscriminado, em doses incorretas ou por tempo insuficiente, seleciona e fortalece “superbactérias”, tornando infecções comuns em sentenças de morte. O farmacêutico que facilita esse acesso está contribuindo para o esgotamento de nosso arsenal terapêutico.
  • Psicotrópicos: esses fármacos atuam diretamente no Sistema Nervoso Central e seu controle rigoroso existe para prevenir quadros de dependência química, tolerância, crises de abstinência e surtos psicóticos. O uso sem acompanhamento médico pode mascarar transtornos graves, como depressão maior ou esquizofrenia, retardando o diagnóstico correto e levando a um agravamento irreversível da condição do paciente. Além disso, a venda ilegal alimenta um mercado paralelo que vitimiza ainda mais pessoas.
  • Novas classes de medicamentos controlados (ex: agonistas de GLP-1): a recente inclusão de medicamentos para tratamento de obesidade e diabetes em regimes de controle mais estritos ilustra a necessidade de vigilância contínua. A venda sem receita para fins estéticos expõe os usuários a riscos sérios como pancreatite, hipoglicemia severa e distúrbios gastrointestinais, além de gerar desabastecimento para pacientes que realmente dependem desses fármacos para o controle de doenças crônicas.

A anatomia dos “jeitinhos” e a nulidade do argumento “o cliente precisa”

Vender medicamento controlado sem receita é crime. Ponto. No entanto, existem outras práticas, disfarçadas de “ajuda”, que são igualmente danosas e ilegais. É nosso dever profissional reconhecê-las e rechaçá-las:

  • Receitas inválidas são inválidas: não há margem para interpretação. Uma receita com antimicrobiano e controlado da lista C1 juntos é nula para ambos. Uma receita vencida perdeu sua validade terapêutica e legal. Uma receita sem dados obrigatórios do paciente, médico ou medicamento é um documento falho. O famoso “jeitinho” de tirar uma fotocópia e devolver uma via para o paciente é uma fraude.
  • A urgência tem local certo: o argumento “o cliente precisa com urgência” não se sustenta na farmácia comunitária, que lida com tratamentos ambulatoriais. Verdadeiras urgências e emergências devem ser resolvidas em unidades de pronto atendimento ou hospitais. O paciente pode e deve ser orientado a contatar o prescritor para obter uma receita válida. Nossa responsabilidade é com a segurança, não com a conveniência.

O esvaziamento do papel farmacêutico e a ameaça do supermercado

Cada vez que cedemos a um “jeitinho”, estamos enviando uma mensagem perigosa à sociedade: a de que nosso conhecimento técnico e nosso papel como barreira sanitária são opcionais. Se o farmacêutico se resume a um mero operador de caixa que entrega o produto solicitado, qual é o nosso diferencial?

Essa autossabotagem profissional é o que fortalece, ano após ano, o lobby pela venda de medicamentos em supermercados. Afinal, se o critério técnico e a avaliação farmacêutica são ignorados dentro da própria farmácia, por que a sociedade deveria continuar a enxergar o estabelecimento de saúde como essencial?

Nosso valor não está na venda, mas no cuidado. Está em garantir o uso racional, seguro e eficaz do medicamento. Está em honrar nosso juramento, nosso código de ética e a legislação que rege uma prática de imensa responsabilidade. A dispensação farmacêutica é o ato final que garante que todo o processo, da consulta à prescrição, se concretize com segurança para o paciente. Abrir mão disso é abrir mão da própria profissão.

Que a Operação “Tarja Preta” sirva não como um espetáculo midiático, mas como um momento de profunda reflexão interna. Que possamos rejeitar veementemente qualquer prática que diminua nossa importância e coloque em risco a saúde da comunidade a quem juramos servir. O futuro da farmácia depende da integridade que demonstramos hoje.

Autora: Larissa Alana, farmacêutica e professora, possui experiência em indústria farmacêutica, drogarias de grandes redes, Unidades de Pronto Atendimento (UPA), hospitais e Ministério da Saúde.

Uma resposta

  1. Até concordo com o que foi dito. Porém o buraco é muito mais em baixo. As poucas drogarias que fazem da forma correta, são vagas extremamente concorridas. Pedem quase uma experiência de 200h em vôo para Marte. E as opções que restam aos farmacêuticos são as que ou vende ou é demitido. Não existe um meio termo. Quem deveria fazer uma fiscalização mais detalhado não faz, é ridículo a forma arcaica de guarda receituário. Acumulo de papéis, a probabilidade de encontrar um erro numa pilha de receitas e rara. Educar seria a forma mais adequada.

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O Autor

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